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Contestação à viabilidade da recuperação energética de resíduos no Brasil

Atualizado: 29 de set.

ABES/DF e mais 22 entidades assinam nota técnica que questiona a incineração de resíduos, defendida em programa da GloboNews veiculado em 6 de setembro


1. Contexto

No dia 6 de setembro de 2025, a GloboNews exibiu uma reportagem sobre a recuperação energética de resíduos, com a participação da ABREN (Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos). A entrevista enfatizou a ausência de usinas no Brasil e defendeu a necessidade de implementar essa tecnologia.

Esta nota técnica contesta os argumentos apresentados, destacando as limitações técnicas, econômicas, sociais e ambientais dessa alternativa quando comparada a estratégias prioritárias de gestão de resíduos sólidos no contexto brasileiro.


2. Análise do Projeto de Lei 3311/2025 (Metano Zero)

O Projeto de Lei 3311/2025, de autoria do senador Fernando Dueire (PMDB-PB), propõe a criação de um marco regulatório para viabilizar as usinas de recuperação energética (UREs) sob a justificativa de combate às emissões de metano. A proposta, apoiada pela ABREN, busca alterar a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) para que a recuperação energética se torne uma opção preferencial à disposição em aterros.

Tal abordagem é problemática por diversas razões. O PL ignora a hierarquia estabelecida pela PNRS, que prioriza a não geração, redução, reutilização e reciclagem. Ao incentivar a incineração, mesmo que para fins energéticos, o projeto desvia o foco da valorização material dos resíduos e estimula uma solução de alto custo, que exige subsídios e contratos de longo prazo, em detrimento de modelos mais eficientes e inclusivos já previstos na legislação brasileira.

Além disso, um programa como o proposto deveria estar no escopo do Plano Nacional de Resíduos Sólidos, que é o instrumento legal para planejar as ações do setor. A criação de programas por meio de Projetos de Lei isolados transforma o planejamento nacional em uma "colcha de retalhos". A PNRS exige que o Plano seja elaborado com Controle Social, e não com acordos com parlamentares. Propostas de políticas públicas de grande impacto, como o Metano Zero, ganham legitimidade e robustez quando debatidas com a sociedade. O controle social é um pilar fundamental para a construção de soluções duradouras, garantindo que o Plano Nacional de Resíduos Sólidos reflita um consenso amplo e técnico, e não apenas interesses pontuais.

É importante ressaltar que aterros sanitários licenciados não deveriam emitir metano. O licenciamento ambiental já exige a coleta e queima do biogás para evitar a emissão de gases poluentes. Em São Paulo, por exemplo, os aterros privados que geram energia a partir do metano coletado abastecem mais de 500.000 habitantes. Portanto, o grande investimento já foi feito. Uma proposta mais coerente seria a alteração da Lei nº 6.938/81 para incluir a emissão de metano como poluente e obrigar a geração de energia em aterros, em vez de investir em soluções mais caras.


3. A Hierarquização da Gestão de Resíduos na PNRS

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS – Lei nº 12.305/2010) estabelece uma ordem de prioridade que deve guiar políticas públicas e investimentos:

  • Não geração

  • Redução

  • Reutilização

  • Reciclagem

  • Tratamento dos resíduos sólidos (incluindo compostagem e biodigestão dos orgânicos)

  • Disposição final ambientalmente adequada

Nesse arcabouço, a recuperação energética (WTE) é considerada parte do tratamento, mas deve incidir apenas sobre a fração de rejeitos que não apresenta viabilidade técnica ou econômica de reciclagem ou compostagem.

A própria PNRS indica que a prioridade nacional não é a incineração com geração de energia, mas sim a valorização material dos resíduos, em consonância com a economia circular e a inclusão socioeconômica de trabalhadores.


4. Composição dos Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil

A fração média dos resíduos coletados apresenta a seguinte distribuição (Fonte: MMA):

  • ~50% de matéria orgânica – passível de compostagem ou biodigestão.

  • ~33% de recicláveis secos (papel, plástico, vidro e metais).

  • ~17% de rejeitos – sem viabilidade técnica ou econômica de reciclagem.

Dessa forma, segundo a prioridade da Lei 12.305/10, a fração de 50% de matéria orgânica tem um rendimento muito superior, tanto energético (via biodigestão) quanto em massa (via compostagem), do que na incineração, pois possui um teor de umidade muito alto e baixo poder calorífico. Da mesma forma, os 33% de recicláveis, como determina a lei, devem ser encaminhados para a reciclagem por ser a opção mais sustentável. Portanto, para viabilizar a incineração, seria necessário queimar o que deveria ser reciclado, desrespeitando a própria lei.

No Brasil, onde a reciclagem ainda não alcança sequer 5% do total coletado, estimular a incineração pode gerar um efeito perverso: retirar materiais recicláveis da cadeia produtiva, fragilizando o mercado de reciclados e comprometendo a inclusão socioeconômica de milhares de catadores.


5. Comparação de Custos de Investimento

No que diz respeito à geração de energia, o Brasil tem fontes alternativas sustentáveis e de baixo custo. Por isso, a recuperação energética seria a mais cara de todas, devido à necessidade de subsídios.

(Fonte: EPE - Caderno de Custos Geração e Transmissão, PDE 2034)

  • Energia Solar Fotovoltaica: cerca de R$ 5.000/kW instalado, com implantação modular, descentralizada e de rápida execução.

  • Biogás – Resíduo sucroenergético: entre R$ 3.000 e R$ 12.000/kW; o biogás se destaca por fechar ciclos de resíduos, gerar energia limpa, produzir biofertilizantes e criar oportunidades econômicas locais — ao contrário do WTE (incineração), que é centralizado, caro e pouco inclusivo.

  • Usinas Hidrelétricas: de R$ 8.600 a R$ 15.200/kW, considerando que esta é a matriz energética mais utilizada no Brasil.

  • Recuperação Energética de Resíduos (WTE – Waste-to-Energy): em torno de R$ 36.000/kW, exigindo alta escala, maior complexidade tecnológica e elevados custos de capital.

O investimento inicial em WTE é aproximadamente sete vezes superior ao da fotovoltaica e significativamente mais alto do que a geração a partir de biogás e de usinas hidrelétricas, um cenário bem diferente de outros países.

Para entender a razão do interesse por WTE em outras nações, basta observar suas matrizes energéticas. A matriz da China é dominada pelo carvão e outras fontes fósseis; os EUA dependem fortemente de petróleo, carvão e gás natural; o Japão também tem forte dependência de combustíveis fósseis importados, como petróleo e gás natural; e a Alemanha busca uma transição para energias renováveis, mas ainda depende significativamente de combustíveis fósseis, principalmente gás natural. Eles não possuem potencial hidroelétrico, solar e eólico tão abundante e de baixo custo como o nosso, por isso estão investindo nestas alternativas para diminuir o uso de fósseis. A simples afirmação de que eles possuem WTE ignora que eles estão revertendo seu cenário energético na medida do possível. A pergunta que fica é: Vamos nós nos metermos naquilo que eles estão diminuindo?


6. Aspectos Técnicos, Sociais e Ambientais

  • Trabalho e Renda: A reciclagem emprega mais de 800 mil catadores em todo o Brasil, organizados em cooperativas que atuam inclusive em municípios onde usinas WTE são inviáveis. O potencial de geração de emprego na reciclagem é enorme. Em contraste, as plantas WTE são automatizadas, com baixo potencial de geração de emprego local.

  • Sustentabilidade Econômica e Subsídios: A viabilidade econômica de uma planta de incineração é frágil. Apenas a cobrança da taxa de portão (Gate Fee) dos municípios não é suficiente para cobrir os altos custos de investimento e operação. Além disso, a venda da energia gerada não é competitiva com outras modalidades, exigindo a necessidade de subsídios. O objetivo do PL é justamente criar subsídios para essa indústria, que só subsiste com um sistema de tarifa subsidiada. A pergunta que se coloca é: Quem fará este subsídio? O Setor Elétrico? A conta será paga por todos nós, por meio da tarifa de energia elétrica. Um investimento tão elevado aprisiona o sistema, pois mesmo que tenhamos fontes de energia mais baratas, o equipamento não permite interrupção na produção, já que o custo de manutenção do sistema parado é muito maior.

  • Externalidades Ambientais:

    • Reciclagem e Compostagem: reduzem emissões, preservam recursos naturais e estimulam a economia circular.

    • WTE: geram poluentes e cinzas tóxicas. Além disso, a dependência de um grande volume de resíduos para manter a viabilidade das usinas WTE desestimula a separação na fonte, fundamental para a destinação com maior performance socioambiental.

  • Plásticos e Materiais Não Recicláveis: Reduzir o consumo de plásticos de uso único e de materiais de difícil reciclabilidade é fundamental para viabilizar sistemas mais eficientes e reduzir impactos ambientais.


7. Viabilidade da Recuperação Energética no Brasil

A recuperação energética de resíduos sólidos urbanos dificilmente será competitiva frente a alternativas como reciclagem, compostagem, biodigestão e geração fotovoltaica.

Se a hierarquia da PNRS for respeitada e as frações orgânicas e dos recicláveis forem devidamente desviadas, o poder calorífico dos resíduos remanescentes diminui drasticamente. Isso compromete severamente a capacidade de geração de energia e, por consequência, a viabilidade econômica das usinas.

Sua aplicação pode ser considerada apenas em casos específicos:

  • Quando houver alto custo de aterro, esses custos devem ser primeiramente comparados com a alternativa de transformar a matéria orgânica em adubo orgânico.

  • Necessidade de energia firme em complemento a fontes intermitentes.

  • Cenários regulatórios com precificação de carbono, que valorizem a mitigação das emissões de metano de aterros.


8. Conclusão

No contexto brasileiro, a hierarquia da PNRS deve orientar a gestão: privilegiar a não geração, redução, reutilização, reciclagem e compostagem, reservando a recuperação energética apenas para a fração de rejeitos.

Portanto, a reciclagem e a compostagem devem ser a prioridade nacional por seu menor custo, maior geração de empregos e benefícios ambientais. A recuperação energética não deve ser vista como solução central, mas como alternativa restrita e complementar, aplicável somente em contextos metropolitanos específicos.

O caminho mais adequado para o Brasil é claro: investir em coleta seletiva, infraestrutura para triagem, sistemas de compostagem e biodigestão e estímulos à cadeia da reciclagem. Só assim será possível aliar inclusão social, eficiência econômica e ganhos ambientais reais, em sintonia com os compromissos climáticos assumidos pelo país.

Recomendação:

Reafirmar a hierarquia da PNRS como fundamento das políticas públicas de resíduos sólidos no Brasil, fortalecendo a inclusão dos catadores, a redução da fabricação e da utilização de plásticos descartáveis e a valorização material dos resíduos. Além disso, recomenda-se que o Projeto de Lei 3311/2025 seja reprovado, e que as alternativas de recuperação energética sejam estudadas dentro do escopo do Plano Nacional de Resíduos Sólidos, sob o risco de que o Plano se torne uma "colcha de retalhos". O controle social é feito pela sociedade diretamente, e não por acordos no parlamento, como determina a Lei 12.305/10.


Referências

  1. Lei 12.305/2010: Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).

  2. MMA: Informações do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima sobre a composição média dos Resíduos Sólidos Urbanos.

  3. EPE - Empresa de Pesquisa Energética: Caderno de Custos Geração e Transmissão_PDE2034_2024.09.06.pdf - Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-804/topico-709/Caderno%20de%20Custos%20Gera%C3%A7%C3%A3o%20e%20Transmiss%C3%A3o_PDE2034_2024.09.06.pdf


Assinam a Nota Técnica


  1. Associação Brasileira de Combate ao Lixo no Mar - ABLM

  2. Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental - ABES/DF

  3. Instituto Recicleiros

  4. Instituto CATAPOP

  5. Movimento Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais recicláveis - MNCR

  6. Instituto SUSTENTAR Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa em Sustentabilidade

  7. Observatório da PNRS (OPNRS)

  8. Toxisphera

  9. Projeto Hospitais Saudáveis

  10. Oceana Brasil

  11. Núcleo de Caracterização de Materiais da UNISiNos

  12. INSTITUTO NENUCA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL - INSEA

  13. Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental - ABES/PA

  14. Pimp my Carroça 

  15. Instituto Polis 

  16. Aliança Resíduo Zero Brasil- ARZB

  17. Observatório da Reciclagem Inclusiva - ORIS

  18. Câmara Temática de Resíduos Sólidos- ABES/MG

  19. Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental - ABES/MG

  20. Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental - ABES/RN

  21. Instituto 5 Elementos de Educação para a Sustentabilidade

  22. Rede Resíduos 

  23. Instituto BVRio

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