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Homem que viveu na rua por 12 anos agora é gestor ambiental e líder nacional de catadores

Telines Basílio do Nascimento Junior nasceu em Nova Iguaçu, foi para São Paulo, foi viciado em drogas e conseguiu, através da reciclagem, se recuperar



"Sou de Austin, em Nova Iguaçu. Cresci ouvindo que São Paulo é a cidade das oportunidades. Meu sonho era arrumar um emprego bom, fazer família. Digo que tive três mães. A zero um foi embora quando eu tinha quase 5 anos. Depois veio a zero dois. Ela me adotou e eu conheci o amor de mãe. Nos meus 12 anos, meu pai se separou e casou de novo, com a zero três. Começou a pior fase da vida dela, porque muito cedo, com 16 anos, fui para as drogas e virei um problema.


Meu pai era fiscal de obras da prefeitura de Nova Iguaçu e sempre me deu muito apoio e carinho. Mas eu tinha a curiosidade de querer experimentar. Acabei me viciando.

Na primeira oportunidade que tive de vir para São Paulo, com pouco mais de 18, eu vim. Mas retornei ao Rio. Aos 22, vim definitivamente, formado como técnico em contabilidade (também fiz curso de serralheiro industrial).


Cheguei numa madrugada de sábado e, em um jornal, vi um anúncio de pensão no Cambuci. Paguei um mês antecipado. Fiquei esse mês todo sem conseguir emprego. O dinheiro acabou e o dono da pensão me botou para fora. Também tinha o vício da droga e do álcool. Me tornei morador de rua. Primeiro no Centro, e depois na Zona Sul.

Não quis voltar para o Rio. Fiquei sem contato com a minha família por mais de dez anos. Meu pai (falecido em 2010) achava que eu tinha morrido. Tenho dois irmãos mais velhos.


Passei 12 anos na rua. Um catador me disse: ‘vou te levar ao dono do ferro-velho. Você deixa o RG, pega uma carroça e sai comigo. Vou te ensinar o que tem e o que não tem valor’. E nesses 12 anos fui carroceiro, carrinheiro, burro sem rabo, trecheiro. Esse monte de formas pejorativas de que somos chamados. Só deixei de morar na rua após conhecer dona Tiana, dona de um ferro-velho próximo ao Autódromo de Interlagos. Ela me deu um espaço num terreno para eu construir um barraquinho. Meu primeiro travesseiro era um bloco de cimento. Minha cama era de papelão. Mas me sentia num castelo.


Na rua você não dorme, só descansa um pouco. Em praças, em grupos, porque um protege o outro. Carregava só meus documentos e uma coberta. Sempre passava alguma ONG que trocava minha coberta e distribuía sopa e lanche na madrugada. O Brasil tem pessoas muito boas.


Sempre fui muito conciliador. Na rua, incluíram “Carioca” no meu nome. Uma maneira de me defender era fazer marketing pessoal. Tirava onda de flamenguista e tinha jeito acolhedor, sempre rindo, tirando sarro. Ajudou muito.


Em 2001, eu e oito catadores da Zona Sul montamos um grupo, o “Lixo por quê?”. A ideia era trabalhar em conjunto para produzir mais, fazer mais material. Os homens saíam para a rua com suas carroças, e as mulheres faziam a separação do material. A gente tinha percebido que algumas famílias de catadores começavam a se organizar e até a se motorizar. Nessa época, eram poucas as cooperativas, e sem o glamour de hoje. A primeira do Brasil é a Coopamare, de 1988, de Pinheiros. No final dos anos de 1990 que começou a se discutir muito em São Paulo economia solidária. Em 2002, ia ter uma reformulação do plano diretor da cidade, que iria contemplar catadores em cooperativas. Foi feito um censo regional, e na nossa região havia 46 catadores.


Não sabíamos o que era cooperativismo, mas fomos em uma reunião com a prefeitura, explicaram a possibilidade de investimentos para que não ficássemos mais tão expostos a sol e chuva e tivéssemos um lugar salubre para trabalhar. Começou uma capacitação: quem ia ganhava o dinheiro da condução e uma cesta básica. Durou cerca de um ano. Dos 46 sobraram 22. Vi acender uma luz no fim do túnel e me agarrei nisso. Em 30 de agosto de 2003, nasceu a Cooperativa de Coleta Seletiva Capela do Socorro, a Coopercaps. Minha vida se divide aí.


Amizade e amor


Nessa época, conheci uma menininha, sobrinha de outro catador, e ficamos amigos. Essa amizade foi uma coisa divina, que acabou unindo os pais. Casei com a mãe dela, Margarida, e hoje temos, além dessa menina, a Josy, o Marcos Paulo de filho. Também tenho o Cleyton, no Rio, de uma relação anterior. E larguei as drogas logo após conhecer a Margarida. Um dia, com um papelote de cocaína, parecia que estava cheirando pó e vidro. Meu nariz sangrava, ardia meu cérebro. Decidi que não ia cheirar mais nem beber mais uma gota de álcool.


Me vi um líder que eu não sabia que era. Na cooperativa, eu organizava tarefas, distribuía funções, deixava limpa a central de triagem. Passamos dois anos sem levar dinheiro para casa. Em 2004, o salário mínimo era de mais ou menos R$ 230. A gente, quando muito, a cada dois meses, levava R$ 50, R$ 60 para casa. A prefeitura montou uma central de triagem com fogão, geladeira, e a gente comprava com o dinheiro que tinha pão, leite, café, arroz, feijão, mistura. Um dia era salsicha, outro era costela. Pedi ajuda à prefeitura para entender mais de cooperativismo. E começamos a aprender como são as assembleias, os conselhos diretor e fiscal. Passamos a ser olhados de forma mais generosa pelo poder público. Já tínhamos ali mais de 30 cooperados. Em 2008, o grupo fundador me pediu para ser diretor-presidente.


Nesse mesmo ano, numa parceria com a prefeitura, o governo japonês e a cidade de Osaka trouxeram um projeto de educação ambiental nas escolas. A prefeitura nos indicou para ser a cooperativa piloto nesse trabalho. Fui convidado para falar dessa experiência em Osaka. Devo ter me saído bem, porque ganhei um curso de resíduos sólidos urbanos: era para ficar 12 dias, mas fiquei 28 no Japão.


Na volta, vi que precisava retomar os estudos. Prestei vestibular para a Unisa, passei em quarto lugar para gestão ambiental. Mas travei no primeiro dia: não fui à aula, com medo. No terceiro dia, juntou mulher e filha para me deixarem na porta. Contei logo minha história na sala e isso quebrou uma barreira. Os jovens se aproximaram de mim. Depois da faculdade, fiz pós em gestão de projetos. Tenho quase 30 cursos de especialização nas áreas ambiental, de economia circular e de cooperativismo.


Maior cooperativa do país.


Em 2014, criei um rede que tem hoje 18 cooperativas. A ideia é agregar valor aos resíduos, gerando um volume maior para negociar direto com as indústrias recicladoras. Na pandemia, fundei a Confederação Nacional das Cooperativas de Reciclagem. A Coopercaps permanece onde tudo começou, mas hoje tem mais cinco unidades. Geramos emprego e renda para 350 famílias, que têm retirado em torno de dois salários mínimos e meio por mês. O perfil dos nossos cooperados é de jovens, que adotamos antes da criminalidade. E temos egressos do sistema prisional, refugiados, pessoas LGBTQIA+. Em 2022, foram 24 mil toneladas de resíduos processados, com faturamento de R$ 18 milhões. Hoje é a maior e mais produtiva cooperativa de reciclagem do país.


Faço trabalho voluntário numa casa de recuperação para pessoas da cracolândia. Quando terminam o tratamento, vão para a cooperativa. No ano passado, criei o Centro de Referência para Cooperativas e Catadores, para qualificar a nossa profissão, a custo zero para os catadores. Fica em Jurubatuba. Ainda somos profissionais invisíveis para a sociedade. A maioria não teve a chance de sentar numa sala de aula. Isso eu conto no livro “O catador e o presidente: a vida de Telines Basilio do Nascimento Junior” (de Ana Maria Bernasconi, Editora Appris, lançado no dia 5).


Nosso segmento vem mudando com o aumento, mesmo que lento, da consciência em relação ao nosso trabalho. Tenho batido na tecla que é preciso ter na grade curricular das escolas, de forma obrigatória, a educação ambiental. Gestão de resíduos é um negócio lucrativo, ligado ao futuro, assim como tecnologias da informação. Precisamos formar profissionais para gerar mais emprego, renda e incluir pessoas que estão à margem. Só 3% do passivo são reciclados no Brasil, e 90% de todos esses resíduos passam pelas mãos dos catadores.


Somos uma categoria com mais de 1 milhão de pessoas no Brasil e a sociedade precisa valorizar essa mão de obra. Reciclar vidas é a minha missão. Já pensou numa cidade sem reciclagem e catador? Simplesmente não existe.”


*Em depoimento a Ludmilla de Lima


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